O ritmo infernal do ciclismo atual: "Todos estão no máximo já em dezembro"

Pogacar fala em conferência de imprensa
Pogacar fala em conferência de imprensaJOSE JORDAN / AFP

Férias? Que férias? Em pleno mês de dezembro, numa altura em que antigamente os ciclistas recuperavam energias ou retomavam calmamente os treinos, os profissionais do pelotão treinam com uma intensidade semelhante à da época competitiva.

Espanha foi novamente escolhida como palco principal para as primeiras concentrações de pré-época das equipas de ciclismo.

Após uma paragem de duas a cinco semanas, muitos ciclistas treinam para recuperar rapidamente a forma física, conhecer os novos colegas e testar o material para o novo ano, a um ritmo que pode surpreender os adeptos mais antigos deste desporto.

As primeiras corridas do calendário mundial ainda estão distantes e até algumas estrelas, como o esloveno Tadej Pogacar, planeiam começar a temporada em março, mas ninguém diria isso ao ver os corredores da UAE a pedalar pelas estradas da Costa Blanca, em Alicante.

"Lembro-me de um treino em que tive a mesma potência média que quando terminei em 3.º no Tour de Flandres no ano passado", contou o alemão Nils Politt, um dos principais apoios de Pogacar na UAE, no podcast apresentado pelo seu compatriota e antigo ciclista Jan Ullrich.

Este último, vencedor do Tour de France em 1997 e que mais tarde admitiu ter recorrido ao doping durante a carreira, costumava ganhar cerca de dez quilos nas férias entre épocas, algo que hoje é completamente impensável.

"Um ciclismo diferente"

"Antes era tudo mais descontraído. Podia haver um Óscar Freire (três vezes campeão do mundo, em 1999, 2001 e 2004) que só pegava na bicicleta pela primeira vez desde a última corrida durante a concentração. Pelo meio, tinha estado a jogar ténis. Hoje, se ganhaste dois ou três quilos até dezembro, já tens um problema. Todos estão a dar tudo em dezembro", avisa o alemão Simon Geschke, que se retirou há um ano.

O francês Benoît Cosnefroy confirma essa ideia: "Antes era um ciclismo diferente. Agora, todos os dias tens de dar o máximo".

O belga Tim Wellens também garante que alguns treinos lhe parecem mais exigentes do que as próprias corridas.

Em Maiorca, neste momento com a sua nova equipa, Red Bull Bora, o belga Remco Evenepoel também fala sobre o tema: "Na minha terceira semana desde que recomecei já estou a fazer treinos intensos. Se quero aproximar-me do nível do Pogacar, tenho de sofrer".

Saúde mental

Com 32 anos, o francês Guillaume Martin, um dos líderes da Groupama-FDJ, também reflete sobre a evolução dos inícios de época ao longo da sua carreira: "Quando passei a profissional em 2016, ainda era possível encarar as primeiras corridas da temporada como preparação. Agora isso acabou. É preciso estar pronto desde a primeira".

"Há 10 ou 15 anos, quando havia um dia de descanso após quatro dias de concentração, saía-se à noite na véspera. Agora já ninguém faz isso", conta Cosnefroy.

O universo do ciclismo está cada vez mais competitivo e isso também tem impacto na saúde mental dos corredores.

Alguns terminam a carreira muito cedo, como o espanhol Unai Zubeldia (22 anos), que lamenta o "lado negro" de um desporto que obriga a ser "uma máquina de pedalar numa perseguição desenfreada pelo rendimento".

Outros preferem não se queixar e adaptar-se a esta realidade.

"Temos uma vida de sonho, embora as viagens e a distância dos nossos entes queridos por vezes pese", sublinha o esloveno Matej Mohoric (31 anos), vencedor de três etapas no Tour de France.

"Mas o que é certo é que esta profissão mudou. Quando comecei, íamos de concentração para o norte de Itália. Um dia íamos caminhar com um metro de neve, noutro fazíamos esqui de fundo. E sim, à noite bebíamos qualquer coisa. O que se passa agora não tem nada a ver", reconhece.