Maria João: "O futebol é o espaço onde me sinto mais livre"

Maria João em destaque no Futebol Benfica
Maria João em destaque no Futebol BenficaArquivo Pessoal, Flashscore

O Flash Feminino é a rubrica do Flashscore dedicada a destacar as principais protagonistas das Ligas Femininas em Portugal. Neste espaço, damos voz às jogadoras que brilham nos relvados nacionais. A nossa 31.ª convidada é Maria João, média do Futebol Benfica.

Do futebol à medicina: "Muito feliz com o percurso que tenho vindo a construir"

- Quais são as suas primeiras memórias ligadas ao futebol?

Acho que comecei a andar e a jogar ao mesmo tempo, pelo menos é essa a sensação que tenho. O meu pai foi jogador de futebol e, mais tarde, também treinador, por isso eu acompanhava-o frequentemente aos jogos. Era aquela menina que, antes do jogo ou ao intervalo, ia para dentro do campo e se calhar até gostava mais desses momentos do que do jogo em si.

Depois comecei a acompanhar os meus primos e o resto da família. Sempre houve muita gente ligada ao futebol em casa, portanto jogar à bola, falar sobre futebol e discutir os jogos fazia parte do nosso dia a dia... discutir os jogos, então, era mesmo habitual.

No fundo, lembro-me sempre de ter uma bola por perto. Jogava na escola, levava a bola para todo o lado e acabava por chatear muita gente em casa, com o barulho. Mas o futebol esteve sempre presente desde muito cedo.

Maria João mostra-se grata ao Futebol Benfica
Maria João mostra-se grata ao Futebol BenficaOpta by Stats Perform, Clube Futebol Benfica

- Quando é que surge a ideia de ir para um clube? Partiu de si ou alguém sugeriu esse passo?

Foi uma vontade minha. Comecei por jogar nas equipas da escola e tive também algum incentivo de treinadores que iam reconhecendo algum valor. Sempre tive esse interesse e sempre gostei muito de jogar. Na verdade, gosto de desporto em geral. Acompanho praticamente todas as modalidades, sou muito competitiva e, por isso, além de jogar, queria competir. No entanto, não havia um clube de futebol perto da zona onde vivia, o que acabou por me levar a experimentar outras áreas. Estudei música, fiz karaté e pratiquei outros desportos.

Nunca joguei futebol de formação, algo de que hoje até me arrependo. Tenho colegas que jogaram com rapazes e eu nunca cheguei a fazê-lo. Mais tarde, por volta dos catorze anos, já com essa vontade bem definida, decidi experimentar. Fui com os meus pais e acabei por entrar diretamente numa equipa sénior, porque era o que existia.

Comecei a jogar no Freamunde, na Segunda Divisão. Com apenas catorze anos, já integrava uma equipa sénior. Houve aspetos positivos e outros menos bons, mas, olhando para trás, sinto que foram mais as coisas boas e que tudo isso contribuiu para o percurso que fiz até aqui.

- Tinha 14 anos e jogava com colegas muito mais velhas. Como foi esse processo?

Para mim, foi uma alegria enorme. O que eu queria era jogar. Na altura, treinávamos apenas duas vezes por semana e lembro-me de que tinha colegas de equipa bastante mais velhas, muitas já com a vida organizada, para quem, por vezes, só o facto de ir ao treino já era logisticamente complicado. Para mim, pelo contrário, o dia de treino era o melhor dia da semana.

No primeiro ano joguei muito pouco. Nunca tinha jogado futebol de 11 e tinha ainda pouca noção do jogo. Com o tempo, fui crescendo, fui ganhando espaço, primeiro dentro do balneário, que, muitas vezes, é tão ou mais importante do que dentro de campo. Quando há um bom ambiente e uma integração saudável, tudo acaba por fluir melhor.

A partir daí, fui evoluindo, fui conquistando o meu lugar e esse crescimento levou-me às seleções distritais e, mais tarde, às seleções nacionais.

Nessa época, em 2011/12, o futebol no feminino ainda estava longe daquilo que conhecemos hoje. De que forma é que a Maria João encarava o futuro?

Sinceramente, na minha cabeça, o meu futuro nunca passou pelo futebol e, de certa forma, ainda hoje não passa. Não houve uma fase da minha vida em que tenha pensado no futebol como o meu futuro principal. Nunca descurei a escola e a educação foi sempre a base do meu crescimento.

Aquilo que eu imaginava, na verdade, era algo mais simples: tinha uma grande obsessão com a seleção e gostava muito de lá chegar. Naquela altura, era difícil ter referências. Não se viam muitos jogos, não se conheciam muitas jogadoras. Havia um nome que se destacava e que, para mim, era praticamente a única referência: a Edite Fernandes.

Para mim, se conseguisse jogar, se a visse jogar ou se um dia a encontrasse, já seria suficiente. E a verdade é que acabei por jogar com ela. Foi, sem dúvida, um dos momentos mais felizes da minha carreira.

Maria João estreou-se na Liga ao serviço do Boavista
Maria João estreou-se na Liga ao serviço do BoavistaArquivo Pessoal

- Faz o seu percurso inicial no Norte e acaba por chegar ao Boavista, onde joga na primeira divisão. Um passo importante, não?

Na verdade, quem me foi buscar ao Freamunde foi o treinador da equipa B do Boavista. Comecei por integrar essa equipa, que também competia na segunda divisão. Com o tempo, algumas jogadoras da equipa B acabaram por subir à equipa principal e eu fui uma delas. Tive a oportunidade de jogar na primeira divisão e gostei muito dessa experiência.

Guardo um carinho enorme pelo Boavista. É um clube muito especial para mim e tenho muita pena da situação que está a viver atualmente.

- Depois surge a mudança para o Sul. O que é que esteve na origem dessa decisão? Teve a ver com os estudos ou com outras circunstâncias?

Ainda joguei uma ou duas épocas no Valadares e estava bem no clube. Em condições normais, teria continuado, mas, como já referi, a educação esteve sempre em primeiro lugar. Foi assim para mim e também para os meus pais.

Entretanto, entrei na Faculdade de Medicina, em Lisboa, e isso acabou por trazer toda a minha vida para o Sul. No início, foi um passo um pouco assustador, como qualquer mudança grande, mas hoje sinto-me muito feliz com o percurso que tenho vindo a construir aqui.

- Como tem sido conciliar um curso exigente como Medicina com o futebol? 

Mais do que manter vivo o “bichinho” do futebol, às vezes foi preciso acalmá-lo, para que as prioridades não se invertessem. Sempre tive muitos interesses e divido a minha atenção por várias áreas, mas o futebol é aquela que exige menos de mim.

É o espaço onde posso ser mais livre. Não preciso de estar constantemente concentrada ou de me abstrair de tudo o resto, como acontece noutras áreas da minha vida. É algo que faço de forma natural, quase sem esforço. Claro que me esforço e que me entrego nos treinos, mas o futebol é o lugar onde me sinto mais natural.

Nem sempre é onde sou mais feliz, porque quando as coisas não correm bem eu sofro muito. Ainda assim, é o espaço onde me sinto mais livre, e isso, para mim, é muito importante.

Maria João assume amor pelo Futebol Benfica
Maria João assume amor pelo Futebol BenficaArquivo Pessoal

Do amor ao Fófó à revelação: "Vou fazer um interregno no final da época"

- A sua primeira experiência no Sul acaba por ser no Sporting, na equipa B, e só depois chega ao Futebol Benfica (Fófó), o clube onde esteve mais anos, apesar de uma passagem pelo Racing Power pelo meio. O que é que o Fófó representa para si?

O Fófó é o clube do meu coração, isso é inegável. É o sítio onde me sinto bem e onde a minha família sabe que eu estou bem, o que para mim é muito importante.

Quando vim para o Sporting, percebi rapidamente que o ambiente era diferente. Reconheço que hoje as jogadoras têm muito mais condições para crescer e essa experiência também não me fez mal, mas não era um contexto em que me enquadrasse. Já era um pouco mais velha quando cheguei e não estava na fase do projeto em que a equipa se encontrava.

A ida para o Fófó foi muito natural. Não sabia que ia acabar por ficar tantos anos, mas foi uma transição tranquila. Quando vim para Lisboa, estava sozinha, sem família por perto, porque a minha família é toda do Norte, e o Fófó fez-me, desde cedo, sentir em casa, algo que ainda hoje acontece.

Há um aspeto que para mim é fundamental: quando digo aos meus pais que estou no Fófó, eles ficam tranquilos, sabem que estou bem e que estou feliz. Por isso, não tenho dúvidas em dizer que o Fófó é o clube do meu coração. Acho que toda a gente sabe disso - quem joga comigo e quem joga contra mim.

Maria João foi campeã nacional da segunda divisão com o Racing Power
Maria João foi campeã nacional da segunda divisão com o Racing PowerArquivo Pessoal

- Ao fim de vários anos longe do Norte, que espaço é que Lisboa tem hoje na sua vida?

É uma questão difícil. Nunca vou deixar de ser do Norte, isso faz parte de mim, mas estou muito feliz com as raízes que tenho vindo a construir aqui.

Recentemente nasceu o meu sobrinho e isso reforçou ainda mais a ligação a casa. Gosto muito de voltar ao Norte: sinto-me bem acolhida, sinto que as pessoas têm saudades minhas na mesma medida em que eu tenho delas, e esse carinho é algo que não encontro noutros sítios. Voltar é sempre delicioso.

Mas a verdade é que estar em Lisboa também é muito confortável. Os meus amigos fazem-me sentir integrada, parte daqui, e as coisas têm corrido bem. Tenho tido mais oportunidades, sinto que o meu percurso tem evoluído e que estou no sítio certo, pelo menos para esta fase da minha vida.

- Antes de voltarmos a falar do Fófó, em que ponto está a Medicina nesta fase da sua vida?

Estou no meu último ano do curso. Já não tenho aulas e encontro-me apenas em estágio. Foram muitos anos de investimento e de dedicação e posso dizer, sem exagero, que chorei no meu último dia de aulas. Sempre gostei muito de estudar; era aquela criança que não gostava das férias e preferia estar na escola.

Custou-me deixar essa fase e passar para um novo momento da vida, mas as coisas têm corrido muito bem. Sinto que tenho personalidade para estar num hospital e começo a perceber algo muito interessante: o impacto que o futebol teve na forma como trabalho em equipa.

Anos a lidar com diferentes personalidades, hierarquias e contextos acabam por ter retorno. Hoje sinto que tenho facilidade em integrar equipas dentro do hospital e em lidar com esse ambiente. Estou muito entusiasmada com esta fase e tenho a sorte de estar num curso e numa profissão que me dão verdadeira alegria. Gosto mesmo muito do que faço.

- Doutora Maria João, com os estudos a chegar ao fim, como é que o futebol entra agora nessa equação? 

Para já, e posso confessá-lo aqui, no final da época vou fazer um interregno na vertente competitiva. O futebol nunca vai sair da minha vida, disso tenho a certeza, mas sinto que, neste momento, preciso de parar um pouco. No final desta época desportiva terei um exame muito importante e vou precisar de concentrar totalmente as minhas atenções nessa fase. 

Maria João fala sobre o presente e o futuro da modalidade
Maria João fala sobre o presente e o futuro da modalidadeArquivo Pessoal

"Devemos quase uma reparação histórica ao desporto feminino"

- O Futebol Benfica terminou a primeira fase no segundo lugar, apenas atrás da equipa B do Benfica, e aproxima-se a segunda fase, onde entram também as melhores equipas do Norte, como o Famalicão, o FC Porto B, o Gil Vicente e o Clube Albergaria. Antes de olharmos para essa nova etapa, como avalia este início de época: seis vitórias e apenas uma derrota? 

Este início de época não foi propriamente uma surpresa, porque sabíamos que tínhamos recursos para fazer um bom arranque, mas a verdade é que foi tudo muito novo. A equipa técnica é nova e o plantel está mais ou menos dividido entre jogadoras da casa e jogadoras que chegaram agora, embora, no Fófó, a integração seja sempre muito rápida.

Ainda assim, as coisas funcionaram muito bem e muito depressa. O balneário criou dinâmica rapidamente, houve um bom entrosamento e a forma de estar da equipa técnica foi muito bem recebida. Juntaram-se vários fatores para que a época começasse de forma positiva, apesar de, após uma mudança tão grande, isso não ser garantido.

Para nós, foi fundamental começar a ganhar desde cedo. Cimentar ideias com vitórias é sempre a melhor forma de criar confiança, e esse percurso vencedor ajudou-nos a acreditar umas nas outras.

Claro que a derrota frente à equipa B do Benfica custou-nos. Entrámos confiantes, queríamos ganhar o jogo, mas uma expulsão muito cedo condicionou tudo. Ficou sempre a sensação de que podia ter sido diferente, porque a equipa estava sólida e confortável para competir.

Ainda assim, talvez não haja melhor forma de iniciar a segunda fase do que voltar a defrontar o Benfica logo no primeiro jogo. Vai servir para tirar as teimas. A equipa vai estar preparada, disso tenho a certeza.

- Quais são as vossas aspirações e ambições nesta fase?

Para jogar pelo seguro, vou falar das minhas ambições pessoais e deixar um pouco o clube fora disso. A minha ambição é clara: subir de divisão. Não tenho outra coisa na cabeça.

Cheguei ao Fófó quando o clube estava na Primeira Divisão e, sabendo que esta vai ser a época em que vou fazer uma pausa, aquilo que mais gostava era de deixar o Fofó novamente nesse patamar. Por isso, para mim, não há outra meta. Pode vir o FC Porto, podem vir equipas com experiência de Primeira Divisão.

Dito isto, sabemos que ainda temos processos a solidificar. Há momentos em que sentimos que treinamos melhor do que jogamos e acredito que ainda temos margem para transportar mais qualidade do treino para o jogo.

Para esta segunda fase, não diria que precisamos de mudar, mas sim de intensificar o nosso perfil. Já somos uma equipa intensa, mas sinto que, tradicionalmente, as equipas do Norte apresentam um jogo ainda mais físico, com mais duelos e maior intensidade. Vamos ter de igualar esses níveis e até elevá-los para competir de forma tranquila.

Temos perfeita noção das nossas limitações, das limitações dos adversários e também das do próprio clube. Mas aquilo que queremos está acima disso tudo. E é com essa ambição que vamos encarar esta fase.

Maria João deseja subir com o Futebol Benfica
Maria João deseja subir com o Futebol BenficaSports and Girls/Anabela Brito Mendes

- O que é que faz do Futebol Benfica um clube tão especial?

O Fófó é um clube que vive dentro de um bairro. Está em Lisboa, mas está verdadeiramente inserido no bairro de Benfica. É o único clube do bairro. O Sport Lisboa e Benfica, apesar do nome, está fora desse contexto, por muito que por vezes se confunda.

Não é um clube grande à escala do futebol nacional e isso faz com que não tenha as mesmas responsabilidades de um grande. Em contrapartida, permite-lhe ter outras prioridades. A principal é simples: olhar pelas pessoas. E isso é algo com que eu me identifico profundamente. Sempre fiz, e sempre farei, da minha vida um exercício de cuidado com os outros, e estou num clube que faz exatamente isso.

O Fófó tem carinho por quem cá está, por quem cá passou e até por quem já seguiu outros caminhos. Jogamos em casa e vemos muitas vezes as mesmas caras nas bancadas. É um clube fiel. Vemos antigas atletas a regressar, a acompanhar, a apoiar e isso diz muito.

Há um verso do hino do Fófó que diz que quem vem para o Fófó nunca está só. E essa é mesmo a sensação. Há jogadoras que vêm de longe - eu própria sou uma delas - e quando as coisas não estão a correr bem, quando as saudades apertam, o Fófó não falha. Isso sente-se dentro da equipa e sente-se no clube como um todo.

É um clube com limitações financeiras, toda a gente sabe, mas há algo que muito me orgulha: nunca nenhum menino deixou de jogar à bola por não conseguir pagar uma mensalidade ou comprar chuteiras. Quem quer jogar, encontra espaço, encontra apoio e encontra dignidade.

Durante a pandemia, em plena quarentena, houve pessoas do Fófó que me levaram sopa a casa. Isto diz tudo sobre o nível de cuidado que existe aqui. É isso que torna o Fófó diferente de qualquer outro clube e acho que só vivendo por dentro é que se percebe verdadeiramente.

E acrescento ainda uma coisa: somos uma equipa que dá tudo na primeira e na segunda parte, mas somos fortíssimas na terceira parte. Para nós, o convívio, a conversa, pôr a vida em dia e até os “mexericos” fazem parte (risos).

- Apelando agora ao seu olhar crítico e analítico, como é que avalia, neste momento, o estado da segunda divisão e até da primeira divisão? Sabemos que ainda existem lacunas, sobretudo a nível financeiro, mas qual é a sua leitura e que caminho acha que deve ser seguido nos próximos anos?

Falo com a perspetiva de quem está dentro, mas tento também colocar-me um pouco de fora, quase no papel de adepta. E não sei se é apenas uma perceção minha - já comentei isto com algumas colegas - mas sinto que tem havido uma certa desaceleração.

Houve um período, sobretudo quando a Seleção esteve no Europeu, em que parecia que as coisas estavam a correr muito bem. Houve interesse, bons públicos: a Luz encheu, o Dragão encheu, tanto em jogos da Seleção como em jogos de clubes. Nessa altura, antecipava um crescimento maior do que aquele que sinto agora.

Parece-me que, entretanto, houve uma travagem, o que naturalmente me entristece. Não tenho os dados, é apenas uma sensação. Mas acredito que esta desaceleração esteja muito ligada à questão do retorno financeiro. Continua a existir a ideia de que, se não há retorno imediato, não deve haver investimento. E isso é uma falácia difícil de desmontar, quando, na verdade, é muito simples: o retorno financeiro não pode ser uma pré-condição, tem de ser uma consequência.

Há também uma espécie de reparação histórica que ainda é devida ao desporto feminino. Se nunca houve um investimento semelhante ao do masculino, é natural que o retorno também nunca tenha sido semelhante. Isto cria um ciclo vicioso que, na minha opinião, precisa de ser interrompido e invertido... e isso faz-se com investimento.

Não defendo investimento a fundo perdido, longe disso. Mas acredito em medidas concretas. Por exemplo, os clubes, sobretudo os grandes, poderiam criar incentivos simples: oferecer regalias nos jogos da equipa principal a sócios que acompanhem o futebol feminino ou as modalidades. São medidas práticas, acessíveis, que podem levar pessoas aos estádios e aos pavilhões e ajudar a criar hábitos.

Parece-me que a mudança tem de ser estrutural, feita a partir da raiz, com medidas claras e orientadas de cima para baixo. Mais do que campanhas pontuais ou ações de exposição momentânea, que muitas vezes acabam por ser efémeras.

Maria João joga futebol praia na AD Pastéis
Maria João joga futebol praia na AD PastéisArquivo Pessoal

Futebol de praia e comentário televisivo: "Obrigou-me a pensar o jogo de outra forma"

- Antes de irmos às duas últimas perguntas, há ainda dois temas que gostava de abordar consigo. Um deles é o futebol de praia. No meio de tão pouco tempo livre, ainda há espaço para essa vertente?

Tudo isto surgiu porque, nessa altura (2021), a época desportiva terminou mais cedo do que o meu ano académico. Eu tinha de estar em Lisboa de qualquer forma e o meu grupo de amigas mais próximo começou a jogar futebol de praia. Convidaram-me naquela lógica descontraída do “vamos só pela terceira parte, é para nos divertirmos um bocadinho”.

A verdade é que começámos assim, quase por brincadeira. Era um campeonato novo e a equipa onde jogo, a AD Pastéis, esteve desde o início envolvida no projeto. Mas, como acontece quase sempre, chegamos ao campo a pensar que é só para brincar e depois acaba por ser tudo menos isso... é sempre a sério.

Tem sido um projeto que me dá muito gozo. É um contexto em que não tenho a responsabilidade que sinto noutros espaços, nomeadamente no Fófó, e isso faz diferença. É um projeto de que gosto muito e é uma forma saudável de passar o verão, com pessoas de quem gosto, ao sol, a fazer desporto. 

- Muito diferente de jogar no sintético ou na relva...

É completamente diferente, não tem mesmo nada a ver. Quando cheguei ao futebol de praia, senti que nunca tinha tocado nem na areia, nem na bola. Era tudo novo para mim.

São gestos muito específicos, a bola anda maioritariamente no ar e é um jogo bastante exigente do ponto de vista físico. Eu não sou propriamente uma jogadora muito forte fisicamente, e isso sente-se, mas também tenho alguma técnica e, por vezes, acabo por me apoiar mais nesse lado.

Além disso, é um jogo de cinco contra cinco e a equipa juntou jogadoras vindas do futebol de 11 e do futsal. As atletas que vinham do futsal já tinham alguma vantagem, sobretudo a nível estratégico e tático. Para mim, foi reaprender tudo do zero. Mas eu gosto de aprender, por isso encarei esse desafio com naturalidade.

- Outra área que acabou por explorar foi a do comentário. Já tive oportunidade de a ouvir e queria perceber se é algo que gosta de fazer e como é que essa possibilidade surgiu?

Caiu completamente do céu. Nunca esteve no meu horizonte. O futebol sempre fez parte da minha vida, mas o comentariado, não... nunca pensei nisso como uma possibilidade.

O que aconteceu foi o seguinte: joguei com a Edite Fernandes na última época da carreira dela, algo que me deixou muito feliz, e continuámos amigas. A Edite, a Carla Couto e a Madalena Gala são rostos muito conhecidos do comentário do futebol feminino, e com toda a legitimidade, porque têm muito conhecimento e muito para dizer sobre a modalidade.

Durante o Europeu feminino, a Sport TV estava a acompanhar a competição e, na altura, nenhuma delas tinha disponibilidade para estar presente. A Edite falou comigo e perguntou-me se queria ir fazer um comentário. A minha reação inicial foi de total estranheza, nem foi um “não”, foi mais um “isto não faz sentido”. Nunca me tinha visto nesse papel.

Ainda assim, encarei aquilo como uma experiência, sem grande responsabilidade, e acabou por correr bem. Comecei por comentar um jogo entre duas seleções estrangeiras, depois voltei para comentar um jogo da Seleção Nacional e, a partir daí, os contactos surgiram de forma natural.

Acabei por começar a comentar sobretudo futebol masculino, que é, na verdade, a modalidade que mais acompanho. É algo que nunca me teria passado pela cabeça, mas que me tem dado muito gozo. Obrigou-me a pensar o jogo de outra forma e sinto até que me ajudou a melhorar alguns aspetos dentro de campo, pela responsabilidade acrescida que também passei a ter fora dele.

Tem sido, no fundo, uma surpresa muito positiva e uma experiência que me tem acrescentado bastante.

- Mais uma opção para o futuro?

Sempre tive dois grandes pontos de interesse desde muito nova. Desde que me lembro, quis ser médica. Mais tarde, à medida que fui crescendo, pensei também em ser professora, porque são duas áreas que me dizem muito: a saúde e a educação. E acredito profundamente que a educação é a base de tudo.

Com o tempo, comecei a perceber que o futebol tem um palco enorme e que nem sempre esse palco é usado da melhor forma. Muitas vezes, vemos mais maus exemplos e maus valores a passar na televisão do que bons. Quem tem tanta visibilidade e chega a tantas crianças tem, inevitavelmente, uma responsabilidade acrescida.

Acredito muito nisso e vejo no futebol uma porta para transmitir valores, ideias e orientações positivas. Por isso, fico feliz por ter agora um pequeno espaço onde posso fazê-lo de forma ponderada, mesmo que seja sempre dentro do contexto do jogo ou do futebol nacional. Aqui e ali, consigo deixar passar algumas das minhas convicções.

Vejo, sim, potencial para o futuro, sempre de forma conciliada e sempre em segundo plano. As minhas prioridades não mudaram. Mas acredito que há condições para conciliar esta vertente com o resto do meu percurso.

Maria João orgulhosa do que tem construído
Maria João orgulhosa do que tem construídoArquivo Pessoal

A responsabilidade do futebol: "Vejo-o como um adolescente"

- Se o futebol fosse uma pessoa, o que é que lhe gostaria de dizer?

Diria para ser ele próprio, mas para crescer. Vejo o futebol como um adolescente: alguém que comete muitos erros, que tem responsabilidade, mas que ainda está a aprender. Pediria que não perdesse a sua essência, ou que a recuperasse um pouco, e que amadurecesse. Que se tornasse melhor, não só para si próprio, mas também para todos os que passam por ele. Que deixasse o mundo melhor do que o encontrou. Essa é, para mim, a verdadeira responsabilidade do futebol.

- Por fim, quando um dia decidir terminar a sua carreira - e ainda não será agora, será apenas um interregno - daqui a uns anos, quando alguém perguntar quem foi a Maria João, o que é que gostaria de ouvir como resposta?

Gostava que dissessem sempre que eu sou o número doze do Fofó, a sua primeira adepta. Jogo com o número doze há vários anos e continuo a usá-lo no Fófó. Por isso, se alguém tivesse de dizer algo sobre mim, gostava que fosse isso: que fui o número doze e uma eterna adepta do Fofó. Só isso.

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